Na atualidade a vida tornou-se vertiginosa, quase todos temos vidas atarefadas, com mil e uma coisas para fazer. A nossa atenção vai saltando de estímulo em estímulo, sempre à procura de cumprir os nossos objetivos ou procurando por algo que nos faça sentir bem. Estamos sempre correndo atrás de algo. Pelo caminho, vamos deixando de dar valor e atenção a muitas das coisas que damos como garantidas na nossa vida. Não damos valor a ter eletricidade, água canalizada, casa, carro, telefone, deixamos de apreciar o valor integral da nossa saúde, das pessoas que amamos, da nossa paz de espírito, da liberdade e prosperidade, e até mesmo da própria vida.
Agradecemos o quão importante essas coisas são quando são tiradas de nós, por exemplo, quando ficamos doentes, ou quando estamos separados dos nossos entes queridos. Então, quando voltamos a recuperar a saúde e nos reunimos com as pessoas que gostamos, podemos realmente sentir como somos abençoados por tê-los. Nesse momento experimentamos um estado de apreciação real, em que nos sentimos contentes e livres de ansiedade. No entanto, geralmente passado pouco tempo damos essas “bênçãos” por garantidas. Até certo ponto, a maioria de nós sofremos com o que se pode chamar de “síndrome de dado adquirido.”
Parte da razão para esta síndrome de dado adquirido é a nossa tendência em adaptarmo-nos rapidamente a novos ambientes e situações. Quando somos expostos a novas experiências e ambientes, elas afetam-nos poderosamente. Pense nos primeiros dias num país estrangeiro desconhecido, nos primeiros dias num novo emprego ou na primeira exposição a um novo cheiro ou sabor. Certamente concorda que essas experiências perdem o seu poder sensorial à medida que nos habituamos a elas.
Parece haver um mecanismo psicológico de “sensibilização”, que rapidamente filtra a intensidade das experiências, transformando novidade em familiaridade. No entanto, acredito que seja possível transcender a tomada de uma síndrome e viver num estado de apreciação relativamente constante. E o primeiro passo no caminho para este estado é entender como e porque os nossos momentos de apreciação ocorrem.
Existem três tipo principais de experiências de apreciação, que descreverei mais abaixo:
Apreciação através da ausência
Este é o tipo de apreciação que acabei de descrever, o que sentimos quando os “bens básicos” das nossas vidas por múltiplas razões são tirados de nós. Muitos dos astronautas norte-americanos que viajaram para a lua experimentaram isso muito intensamente. Em seu retorno, eles se sentiram incrivelmente agradecidos de estar vivos na superfície do planeta Terra, e agradecidos simplesmente por poder respirar, comer os seus pratos favoritos e andar livremente.
Há cerca de 25 anos, tive uma poderosa experiência de apreciação quando fiz um acampamento de 15 dias no mato. Estava a cumprir o serviço militar como Fuzileiro, e passei privação de água, apanhei muitas noites de frio extremo devido a ficar várias horas molhado, e a comida era ração de combate. Quando voltei para o quartel senti como se tivesse uma nova perspectiva na minha vida. Eu me senti incrivelmente afortunado de poder comer uma refeição quente, saciar a sede sempre que necessário e dormir debaixo de um teto com uma temperatura agradável. Quando cheguei ao quartel, lembro-me de dizer: “nunca mais me queixarei de nada!” (Não durou muito).
Uma experiência de quase morte, o aparecimento de uma doença súbita, um diagnóstico de câncer, um acidente ou ferimento, também pode induzir um aumento do estado de apreciação. A ameaça da ausência de vida pode fazer-nos sentir intensamente agradecidos apenas por estarmos vivos e poder experimentar a vida cotidiana.
Mas podemos experimentar este tipo de apreciação também nas pequenas coisas do dia a dia, sem ser necessário o acontecimento de algo catastrófico.
Exemplo: Por certo você já experienciou enorme apreciação ao beber água gelada num dia de imenso calor e após uma longa caminhada. Nesse momento ficamos repentinamente cientes do quão bom é podermos beber água.
Apreciação através da comparação
As experiências de apreciação também são sugeridas por comparação, quando olhamos as nossas próprias situações em relação a outras pessoas que não são tão afortunadas quanto nós. Lembramos o valor de nossos “bens básicos”, testemunhando a ausência deles em outras pessoas. Ou até mesmos por comparação das nossas próprias experiências em momentos diferentes da vida.
Um exemplo simples deste tipo de apreciação pode ser experienciado por qualquer um de nós, em reação aos deprimentes eventos de notícias da atualidade, em que realmente podemos constatar o quão incrivelmente sortudos podemos ser, se pensarmos nos habitantes de Gaza, Síria e Ucrânia e de todas as pessoas que estão com fome e sem residência ou doentes e sem esperança. Tanto sofrimento humano por toda parte. Mas, para a grande maioria de nós temos muitas coisas na nossa vida através das quais nos podemos sentir gratos.
Nota: Não quero dizer que o mal dos outros nos possa fazer sentir bem, nada disso. O que a apreciação através da comparação nos pode proporcionar é um sentimento consciente de que apesar de podermos estar com algum tipo de dificuldade, ainda assim continuamos a ter muitas coisas boas na nossa vida, e que se conscientemente olharmos para elas, certamente dar-nos-ão forças para melhorar os outros aspetos menos bons.
Apreciação consciente
Este é um tipo distinto de apreciação relativamente aos dois tipos anteriores, na medida em que não vem de uma fonte externa, ou seja, não é motivada por uma experiência de ausência ou dependente de um lembrete ou comparação. Aprender a apreciar as coisas boas da vida (apreciação consciente) surge naturalmente de dar toda a nossa atenção às situações e ambiente à nova volta, isto é, à nossa experiência. É o sentimento de apreciação natural que podemos sentir quando nos sentimos relaxados e as nossas mentes ficam bastante silenciosas, e percebemos o mundo que nos rodeia.
Uma pessoa que esteja a viver um momento de luta com uma doença, pode por exemplo relatar algo do género: “Eu comecei a sentir uma verdadeira gratidão pelos pássaros que visitavam o meu jardim, os raios de luz do sol que atravessavam as árvores, a luz adquiriu uma riqueza que achei tão bonita. Minha vida estava um tumulto, mas eu estava tão grata por essas experiências“.
O mesmo pode acontecer no final de uma caminha à beira mar ou num sítio aprazível, podendo relatar-se algo do género: “Após a caminhada, a gratidão é enorme devido à experiência de leveza e tranquilidade da minha alma. Às vezes, é uma combinação de paz, alegria, estar em casa e ser grato“.
Esses momentos de apreciação são tão importantes porque nos mostram um vislumbre da realidade. Afinal, na maioria das experiências de apreciação, só nos tornamos conscientes do que já existe, o que sempre esteve lá, mas que deixamos de prestar atenção. As nossas vidas estão cheias de bênçãos que nos esquecemos de olhar, por vezes, devido à azáfama do dia a dia.
Todos os dias de nossas vidas estão repletos de experiências e atividades que devemos saborear, mas que inconscientemente descartamos. Então, quando temos experiências de apreciação, é um pouco como acordar, depois de esquecer que estávamos adormecidos.
Em seguida deixo um texto da minha autoria:
Contemplo,
Fico uno com a natureza,
Aproximo-me da sua grandeza,
Relativizo as questões da vida, por momentos pertenço a algo grandioso,
Inspiro, expiro e vivo um momento encantado,
Deslumbro-me, olho para dentro e sinto a liberdade a apoderar-se de cada célula do meu corpo,
Um corpo que sente a brisa do vento, que desvenda as nuances das cores, o chilrear dos pássaros,
Permaneço imóvel,
A tranquilidade é alimento para o espírito,
Os pensamentos lentificam-se,
Quero ficar ali, simplesmente ficar,
Como é bom vivenciar a grandiosidade da unificação com a natureza,
Sempre ali, pronta a oferecer a melhor das recordações,
Sempre ali ávida para interagir na minha experiência,
Inspiro e expiro,
A cada momento sou abençoado por algo que me é dado sem ter que dar nada em troca,
Mas eu troco, apercebo-me que troco olhares, respirações, sensações que me permitem experienciar algo que não tem preço,
Sinto-me leve, livre, energizado e preenchido,
Ali fico a contemplar.
Abraço,
Miguel Lucas